sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Pequena história de Natal

O vento estava cortante lá fora. A neve caía, calma e silenciosamente, na rua que, se antes era em tons de cinzento, agora era tão ou mais branca que as nuvens. Os vidros das janelas tremem. E, sentada numa cadeira na sala de estar, a mãe acabava um lindo bordado que começara fazia pouco tempo.
Como o tempo tinha passado! E ainda se lembrava… Nunca tinha tido tempo para nada, ou, se calhar, nunca tinha dado valor ao tempo.
Concentrada, acaba de bordar um anjo no pano. Quer enchê-lo de anjinhos! Anjinhos como a sua Sofia…
E recordava as vezes em que a segunda filha mais nova, entrando a correr no quarto, lhe pedia ofegante: “Mãe, mãe, vem brincar comigo no parque!” “Agora não, querida, não posso. Mas prometo que amanhã vamos” E quantos amanhãs tinham passado! Naquele momento, se pudesse, iria mesmo brincar com ela no parque…
Como se sente cansada, pousa o pano bordado, guarda as linhas e sobre as escadas. Espreita para cada quarto dos outros filhos. Como se os visse a dormir, abeira-se perto de cada um deles de mansinho e dá-lhes um leve beijo na testa. Puxa-lhes os cobertores, para que estes não tenham frio. E, devagar, fecha-lhes as portas dos quartos. No fim, entra no quarto da Sofia.
Havia deixado tudo como sempre havia estado. Ainda lhe sugeriram que, se não tudo, se desfizesse de algumas coisas, mas resistiu energicamente.
Tocou cada brinquedo e olhou demoradamente cada fotografia. Ao passar, sem querer, foi contra a boneca preferida da filha. Apanhou-a e olhou demoradamente para ela. Era a boneca que lhe havia dado no seu último aniversário e que ela, nos seus últimos tempos de vida, carregava devotamente de um lado para o outro da casa, sem ligar ao esforço, porque, efectivamente, era uma boneca bem grande.
Naquele dia chegara a casa extraordinariamente tarde. Todos já dormiam. Então, com a boneca embrulhada numa caixa, entrara devagarinho no seu quarto. “Parabéns! Trouxe-te esta boneca” A filha, um pouco ensonada, perguntou: “Que horas são?” “Desculpa não ter estado aqui. Mas tive de trabalhar até mais tarde. Quanto mais trabalho arrumava, mais trabalho me surgia…” “Não faz mal” disse Sofia “ eu percebo que, se tivesses mesmo podido, tinhas estado comigo…” “Tomaste o medicamento para as dores de cabeça?” “Sim, mãe, tomei.” “Linda!” E, com um beijo, deitou-a de novo e saiu do quarto. É claro que ninguém imaginava que aquilo fosse mais que umas simples dores de cabeça…
E como sentia saudades dos inúmeros corações de cartão que diziam muitas vezes “Adoro-te, mamã!”…
Pousou a boneca em cima da cama e saiu do quarto. Deitou-se na sua cama e adormeceu…

Chegou o dia 23 de Dezembro. E a primeira coisa que fez foi ir ao cemitério. Pelo caminho, a sua filha mais nova, Rita, havia-a interpelado: “Mãe, posso ir contigo?” “Não, hoje não” Mais um hoje em que não ia. E só não dizia para deixar para amanhã porque tinha medo que este não existisse.
Uma vez no cemitério ficou longamente a olhar para a lápide dura e fria que assinalava o local onde se encontrava uma menina pequena, alegre, com lindos olhos azuis e grandes cabelos loiros. Parecia muito triste para tal menina.
E começou a chorar. Agora, sim, tinha tempo. Mas isso não lhe servia de nada, agora…

À noite, contra o que era costume, não foi aos quartos dos outros filhos nem se deitou na sua cama. Antes estendeu-se de bruços na cama de Sofia e voltou a chorar. Que interesse tinha o Natal, se era a primeira vez que o ia passar sem ela?
Sofia entrou, como de costume, a correr no quarto. E pediu, cansada: “Mãe, mãe, vens brincar hoje comigo no parque?”
A mãe levantou-se de um salto. Não podia, aquilo era impossível! Então, Sofia sentou-se no colo dela e abraçou-a dizendo “Não chores, senão também fico triste!” E continuou: “Vens ao parque comigo?” Então a mãe levantou-se. Não, aquilo não era um sonho. E, também, que é que essas coisas importavam agora? Tinha a filha morta à sua frente, com os seus lindo olhos azuis e cabelos loiros a dizer-lhe para não chorar e ir brincar com ela no parque. Para quê pensar muito numa altura como aquelas? Para quê pensar no que é ou não impossível, no que é ou deixa de ser? Limpou as lágrimas à manga da camisola, vestiu um casaco, pegou na filha ao colo para que esta não apanhasse frio aos pés e foi para o parque.
Uma vez lá, Sofia pediu: “Mãe, empurra-me no baloiço!” A mãe ficou a pensar: nunca tinha andado nem empurrado um baloiço. “É fácil! Quando me vires a voltar para trás, a vir de novo contra ti, só tens de dar um empurrão para a frente”. A mãe sorriu. Mas se havia coisa que mais queria era que a filha viesse mesmo contra si; e se pudesse, nunca a deixaria ir para longe…
Quando deixaram de andar de baloiço foram ambas passear de mão dada, pelas ruas, a espreitar as montras escuras cheias de coisas de Natal das lojas fechadas. E, nos vidros embaciados e gelados pela neve, Sofia fazia inúmeros desenhos… Entre eles encontrava-se os típicos corações…
Sempre andando, sem olhar a direcções, foram dar ao jardim da cidade, todo coberto de neve, como as outras ruas. Lá, as árvores erguiam para o céu os recortes delgados dos seus troncos e ramos. O lago estava tão gelado e límpido, que reflectia a luz da Lua. E nisto mãe e filha caminharam de mãos dadas pelo jardim, deixando dois pares de pegadas distintos na relva. E, ao de leve, começam a cair flocos de neve…
De súbito, a menina pára. E diz: “Tenho de ir. Estão a chamar-me.” “Quem te está a chamar?” “Os anjinhos… e a avó…” Nisto, a mãe voltou a chorar. Ajoelhou-se aos pés de Sofia e disse “Por favor, não vás! Não quero que te vás embora outra vez!” “Tenho de ir… será que não percebes? Já não pertenço mais aqui. Cada vez que choraste desde que me fui embora também me fizeste chorar a mim… por favor, deixa-me ir…” A mãe, contendo-se, limpou as lágrimas. A filha continuou “Eu estive sempre contigo. E não foi nas coisas que manténs guardadas no meu quarto, mas no teu coração… desfaz-te delas, não as quero lá… e dá a minha boneca à Rita, que sempre gostou muito dela… não quero que penses em mim como uma memória, antes que estou viva e que sou feliz onde quer que esteja… por que é que choras pela minha felicidade? E deixa de ir, pelo menos tão frequentemente, ao cemitério: achavas mesmo que eu me ia deixar por lá? Não é por aí que me vais encontrar…”
Fez-se um momento de silêncio que mais pareceu uma eternidade. E Sofia disse: “Por favor… deixa-me partir… deixa-me ser feliz…” E tornou, abraçando a mãe: “Gosto muito de ti!”

Acordou. Encontrava-se a dormir no sofá da sala. “Deve ter sido apenas um sonho…” pensou, triste. Nisto, meteu a mão no bolso. E, para sua surpresa, tirou de lá um pequeno coração de cartão com a mensagem “Adoro-te” escrita muitas vezes…

Na manhã seguinte, a mãe levou a pequena Rita consigo ao cemitério. Esta levava nos braços a boneca. “A Sofia ia querer que ficasses com ela…” havia-lhe dito a mãe. Depois da ida ao cemitério, ambas foram passear na rua. A mãe ainda olhou para as montras das lojas agora abertas e iluminadas, a ver se restara algum pequeno desenho… mas tal não acontecia.
Ambas se sentaram num dos bancos do jardim da cidade. Então a pequena Rita perguntou: “A Sofia vai voltar?” “Não, querida, nunca mais…” Rita ajeitou a boneca no seu colo. “Gostava de saber onde ela está… Tu sabes?” “Bem… creio que sim…” “Quando é que a vou voltar a ver?” “Algum dia…” “Onde?”
Nesse momento, a mãe havia acabado o último ponto do seu bordado. Estendeu-o sobre o seu colo e, apontado para as figuras presentes no seu bordado, disse: “Está lá em cima… com estes anjinhos…”…

1 comentário:

Débora Val disse...

A Marta aconselhou-me este blogue, e aconselhou bem. :)

Adorei este texto, e comoveu-me. Fez-me realizar duas coisas: primeiro, que devemos aproveitar o tempo com as pessoas de quem gostamos, pois não poderá haver um amanhã; segundo, que devemos recordar as pessoas falecidas como sendo vivas.

E o texto comoveu-me, porque tenho uma irmã loirinha com olhos azuis, como a Sofia, e um irmão. Eles são chatinhos, mas se eu ficasse sem eles, ficaria completamente devastada.

Beijos e tens um óptimo blogue. :)

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