Noite de Natal de 1822. Há festa nas ruas da animada cidade de Viena. Ouvem-se risos e um riso mais estridente que os outros dilacera o ar como uma espada afiada, deixando escorrer o sangue da noite: o eco.
As famílias reúnem-se durante a noite de Consoada: abençoam o pão, a alegria de estarem juntos. As crianças olham, extasiadas, os copos de vidro sobre a mesa, os presentes, as cores por que é composta uma árvore de Natal.
Mas, algures numa casa dos arredores da cidade, uma menina pequenina olha a noite. Mas o seu penaamento está mais longe. Não se limita a olhar e pensar nos limites que os olhos lhe proporcionam ver através do vidro de uma das janelas do orfanato. Olhava a Lua. Será que o pai também está a olhar a Lua? interroga-se. E, ao mínimo sinal afirmativo, o rosto triste e doente da pequena abre um caloroso e tímido sorriso. Sorri. No entanto, por detrás daquele sorriso, aberto e inocente, esconde-se a dor.
E o pai estava. E o pai estava a olhar a Lua. Injustamente acusado de ter assassinado a esposa e os dois filhos mais velhos, é mantido há cerca de sete anos dentro das paredes frias e sujas de uma prisão. "A pequena teve sorte" comentavam as pessoas "estava na escola". A menina sabia que o que diziam do seu pai não era verdade, a menina sabia que ele era inocente. Mas as outras pessoas não sabiam...
O pai senta-se no chão e pega nas tintas e pincéis que lhe iam dando por caridade. E, com todo o sentimento, pinta a Lua.
"Que pintas?" pergunta um guarda.
"A minha filha" responde o prisioneiro "sei que, precisamente neste momento, está a olhar para a Lua. E, por essa razão, quando sorri, a Lua sorri. Quando chora, a Lua é como que chorasse."
"E como está a tua filha agora?" perguntou, secamente, o guarda.
"Está triste. Espera, agora sorriu."
O guarda solta uma gargalhada e aproxima-se de outro guarda.
"De que te ris?" pergunta o segundo.
"Do prisioneiro da cela 26. Eu sempre o achei maluco, mas nunca pensei que chegasse a tanto. AFianço-te, meu amigo, estes sete anos que passaram deram-lhe a volta à cabeça. E quando sair, isto é, se algum dia voltar a sair, antes de ter tempo de se ver lá fora, já se encontra num hospital psiquiátrico."
O pintor já pintou a Lua. Vai e junta-a a outros tantos desenhos que fez a aguarela durante os últimos sete anos. Todos os desenhos representam as mesmas coisas, ou seja, recordações. Num, observa o parque da cidade com as suas flores. Noutro, a sua casa. A esposa e os filhos sorriem à porta. A esposa que nunca matou. Puxa de outro desenho, desta vez realizado a carvão, que representa os rostos de todos os membros da família, toda reunida. No desenho seguinte pintou o panorama que se via da sua varanda. Noutra, campos sem fim. E imagina-se de mão dadas com a família, a correr na relva fresca e verde da paisagem. De repente, a filha mais nova trar-lhe-ia um pequenino passarinho que caiu do ninho. Iam todos a levá-lo para casa, para debaixo das penas quentes da mãe. Uma vez conseguido e valido o esforço, ficariam todos contentes e os filhos mais pequenos pôr-se-iam a cantar e a dançar à volta da árvore, ora de mãos dadas, ora a bater palmas. E, para o passarinho adormecer mais depressa, cantariam canções:
É de noite e a mãe
vai ter com o filho à cama
adormecer com canções
o menino que tanto ama.
Sorriu, face a este pensamento. E assim ficou largas horas a olhar para a paisagem como se, de um momento para o outro, fosse mesmo correr, dançar, bater palmas e cantar canções para um passarinho caído no chão.
Eram isso mesmo os seus desenhos: uma janela aberta para o mundo.
* * *
Quando, na manhã seguinte, deram com ele morto, debruçado nos seus desenhos, ninguém soube dar uma explicação credível até à chegada do médico: disse que, possivelmente, devido ao facto de o cadáver mostrar poucos agasalhos, teria morrido de frio e fome. As pessoas circundantes, apesar de continuarem a crer que ele tinha morto a esposa e os filhos, condoeram-se. "Como vamos dizer à pequena?" interrogavam-se uns. "Com certeza ela não terá pena de alguém que a deixou na situação em que se encontra!" respondiam outros mais maldosos. "Coitado, quem poderia adivinha que, uma vez lá metido, nunca mais de lá saía?" De facto, faltavam apenas duas semanas para a sua libertação. Mas de que lhe adiantava? Nunca mais recuperaria a sua dignidade perante a sociedade. Um velho sábio disse: "Apesar de tudo o que foi a cusado, foi suficientemente digno para morrer na Noite de Natal! É um sinal! Ele estava inocente!". Mas ninguém acreditou até à captura do verdadeiro autor do crime, apanhado poucas horas depois numa taberna, a beber.
Todas as pessoas se condoeram. Todos o lamentavam. Lamentavam a sua morte, a injusta morte de um inocente. Havia choros, lamentações. Lamentações desnecessárias! Para quê chorar? Nesse momento encontrava-se ele nos seus campos sem fim, de mãos dadas com a família, a orrer, dançar, bater palmas e cantar canções para um passarinho caído no chão.
* * *
Findo o jantar, todos os órfãos se levantam e se vão deitar. Só a pequena ficou.
"Querida, então, não vais para a cama?" pergunta alguém.
"Não. Estou à espera do pai. Ele disse que, pela noite de Natal, me viria visitar..."
"Não adianta a espera. Vai-te deitar." respondeu-lhe, tristemente, a encarregada.
"Mas ele não me encontra..."
"Vai para a cama, Teodora..."
"Ele disse que vinha, logo vou esperar por ele."
"Mas ele não vem!" berrou a encarregada. Estava fora de si.
A pequena, com lágrimas nos olhos, sobe as escadas em direcção ao quarto. A encarregada deixou-se ficar: sentia-se pequenina, muito pequenina. Sentia-se impotente, completamente incapaz...
* * *
Já é noite cerrada. Tedora, deitada na cama, ouve os ruídos dos cães na rua. E espera, paciente... E, tempos mais tarde, já estendia as mãozinhas pequeninas ao pai que como prometera, a tinha ido visitar.
"Pai, vieste! Eu sabia que virias! Mas demoraste tanto tempo..."
Calou-se pois, aqui, o pai encostava o dedo indicador nos lábios, para que fizesse silêncio.
Não há nuvens no céu. E as estrelas brilham tanto, tanto, que, para apequena, brilham mais que o Sol. Cantam os grilos Não passa ninguém na rua. Paira o silêncio. É, sem dúvida, uma noite mágica.
"Pai... conta-me uma história como a mãe fazia..."
E o pai, com indizível ternura, começou a contar...
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