Caía a neve lá fora. Nas ruas, ouviam-se os cânticos de famílias agasalhadas por causa do frio cortante. E as pessoas passavam e paravam para ouvir, esboçando um sorriso; outras, simplesmente, continuavam o seu caminho...
A rua está apinhada de táxis atarefados a transportar pessoas de um lado para o outro, às vezes até desconhecidos compartilham o mesmo automóvel, com o intento de chegar cedo para a Consoada. Duas crianças puxam as saias da mãe para que esta lhes compre um doce. Um senhor fuma cachimbo no parque A senhora solitária dá de comer aos pombos. Um jovem passa rápido de bicicleta com um ramo de flores. Aglomeram-se sons de buzinas para todos os gostos e feitios. E a árvore de Natal, no centro da praça, tão grande ou maior que qualquer outro edifício circundante, é a delícia dos mais pequenos, que a olham, extasiados. Senhores de barba branca e vestidos de vermelho distribuem prendas pequenas. O casal de namorados escorrega no gelo. E a neve caía silenciosa, morosa, conferindo um toque especial ao dia de Natal...
Na casa de tijolo e de quintal ornado com os mais diversos objectos alusivos à quadra, uma criança entra, espavorida, na sala. Estendeu uma caixa em cima da mesa e, após muito custo a tentar convencer os pais, a menina lá conseguiu abrir uma prenda mais cedo. E de lá tirou um boneco de corda, feito em madeira; vestia roupa preta e gravata. Numa mão segurava um violino e, na outra, o arco. Deu-lhe um bocado de corda... e o boneco começou a dançar em cima da mesa, enquanto tocava violino. Contente, a menina bate palmas. E, quando o boneco volta a ficar inerte, saiu da sala e foi ajudar os pais a decorar o quintal.
Não está ninguém em casa... ninguém a que vulgarmente se chame de ser animado... porque os inanimados vão fazendo a festa! Nesse momento, a vassoura encontrava-se, na cozinha, a queixar-se das bolachas ao forno, conversa coloquial, de passagem e de vassoura, que "ai, que as bolachas fazem muitas migalhas" e depois lá andava a moira, coitada, a limpar o chão que os outros pisam, que isto não podia ser e que devia tostá-las menos, que já nem a pá aguentava tanto trabalho. Nas traseiras do jardim, os abetos regalam-se com o frio, pois já era chegado o tempo e comentam o quanto sentem falta dos passarinhos, que se haviam ido embora no mês passado e que cedo voltariam e contariam as novidades. Na sala, o piano tem mais uma discussão acesa com o órgão do sótão, que responde, zangado, nos seus tons mais graves; enquanto isso, as três marionetas do sótão tapam os ouvidos sem paciência, pois há já muito tempo que o velho órgão só fazia uso da sua pedaleira para iniciar discussões... presumiam ser da idade...
No quarto, os bonecos de pano fazem rodas à volta do boneco de corda, pois este sempre era um amigo novo. Levam-no em braços e este, agora no pódio e centro das atenções, toca violino contente, dirigindo-se para a sala, enquanto um sem número de bonecos dançantes o segue quase em cortejo.
Ao pé da lareira está a árvore de Natal e, debaixo dela, o presépio. Nele, dois reis magos ajoelham-se perante o Menino-Deus, acabado de nascer, enquanto que outro de pele mais escura se mantém em pé. Aparece um pastor mais as suas ovelhas que olha, espantado, o acontecido. Ao lado, estão uma vaca e um burro normalmente tão menosprezados pelos humanos e, no entanto, ocupado uma função tão importante! Ao lado do Menino Jesus encontram-se Maria e José. E, no meio deles, um anjo de louça com vestes azuis, asas brancas e longos cabelos de ouro permanece como quem canta hinos de louvor.
Nesse momento, entra o cortejo carnavalesco pela sala. Todos os bonecos cantam e dançam. E o boneco de corda ia na frente, tocando violino.
Mas, com todo o ruído, o menino acorda e começa a chorar! Maria, então, pega-lhe ao colo e canta-lhe, baixinho. José manda calar o boneco de corda, que estava a ser inconveniente e que se mostra levemente incomodado quando vê o anjo de louça a olhar na sua direcção com um ar grave, severo e quase zangado. O cortejo, respeitosamente por quem acabara de nascer, dispersa-se. O menino volta a dormir. E o boneco de corda baixa a cabeça, embaraçado.
Nesse momento entra a menina. Pega nos bonecos de pano e leva-os para o quarto, de volta para a arca dos brinquedos. Quanto ao boneco de corda, sentou-o em cima do piano da sala.
Começa a nevar. Apesar disse, a mãe pega na menina pela mão. Veste-lhe um casaco, cachecol e luvas e, juntas, vão deslizar no gelo. E, guardando as risadas, os tombos e os sorrisos nalgo mais que a memória, está o pai a tirar fotografias.
Sentado no piano da sala, o boneco de corda olha a neve que cai de mansinho... queria estar lá fora também, a ver a árvore de Natal, andar de bicicleta e a comprar doces, pois se confessava muito guloso! E, apesar do frio, por dentro sentia um calorzinho no coração...
O boneco de corda olha para o presépio e, secretamente, desejava encontrar-se naquele momento a deslizar no gelo. E, depois de uma exibição surpreendente, daria a mão... ao anjo de louça, que permanecia com ar ausente ao pé da lareira e embrenhado nas suas canções, o que era uma ocupação muito digna, pensava o boneco de corda...
E assim chega a noite. A família prepara-se para sair e festejar a noite de Natal com os avós. A menina leva um bolo de chocolate, o preferido da avó. Comê-lo-iam no fim do jantar e depois todos se sentariam à lareira com o avô que, fumando no seu velho cachimbo, lhes contaria histórias de Natal da sua infância... sobretudo aquela do lobo, que a menina já conhecia mas não se cansava de ouvir...
Com as pessoas fora, a casa ganha nova vida. Bonecos, pá, luzes e até o próprio presépio dirigem-se para a cozinha para comer as bolachas preparadas pelo fornom para grande chatice da senhora dona vassoura! É certo que a nobreza obriga, mas até o próprio órgão do sótão pretende chegar à cozinha por entre resmungos, pois não consegue descer as escadas, enquanto dois soldadinhos de chumbo arranjam um engenho que o possa ajudar a descer. E o órgão lamuria-se que não havia de descer assim, afirmando que "burro velho não aprende idiomas" e que ele, que havia tocado nas igrejas e que tinha sido o instrumento de um grande kappelmeister, não haveria de descer tão baixo... e as marionetas dançam, perdidas de riso.
Mas o anjo de louça permaneceu mudo e quedo, sempre concentrado nas suas músicas. E o boneco de corda tampouco queria sair do seu lugar em cima do piano... para quê, se estava lá tão bem! Para ele bastava-lhe olhar o anjo de louça, absorto nos seus pensamentos. E como ficava lindo o anjo, concentrado nas suas músicas e ignorando o boneco de corda, que achava que o amava em segredo!
Naquele momento, o boneco de corda só desejava saber tocar no piano alguma música que o anjo soubesse cantar!... E que bonito dueto ficaria, o anjo com a sua voz e o boneco de corda no piano!...
O boneco de corda voltou a olhar a janela e a ver a neve a cair. Na sala, perdurava o silêncio. Só se ouvia o crepitar da lenha na lareira e, muito suave e ao de leve, como que no fundo de um túnel, a voz do anjo de louça.
Então o boneco de corda levantou-se. Desceu do seu lugar e ficou de pé em cima do teclado preto e branco. E depois foi colocando os pés em cima das teclas, primeiro uma a uma, depois duas a duas, pois que as suas mãos nunca dariam conta de um teclado tão grande. E, do melhor jeito que pôde, começou a improvisar...
Lá fora ruge o vento. A neve cai com mais força e a rua é ameaçadas por um temporal. No entanto, dentro da casa de tijolo, está um boneco de corda ao piano que já não improvisa: canta com os pés... e fá-lo de um modo tão natural que é como se já o tivesse feito há anos... de certo modo já o fazia, mas limitava-se aos pensamentos... E o boneco de corda sente-se como se estivesse a deslizar numa pista de gelo. E, como quem acaba de acordar de um sonho, sorri e tira uma grande e vistosa flor vermelha dos enfeites de Natal e estende-a ao anjo de louça...
A janela da sala abre-se com um estrondo. A neve entra pela sala com o seu vento forte. E, ao pé da lareira, o solitário anjo de louça deixa de cantar. E, para sua felicidade e pela primeira vez, o boneco de corda sentiu um estremecer no coraçõ quando o anjo de louça se voltou para trás e abriu um grande sorriso!...
Mas eis que acontece o impensável! Fugindo do temporal, um gato vadio entrou pela janela aberta e refugiou-se na sala. E, sem tomar consciência do que fazia e porque não pensava nas consequências, atirou-se ao anjo de louça que estava ao pé da lareira: com os dentes arrancou-lhe as asas brancas, com as unhas rasgou as suas vestes e, finalmente, arrancou os seus cabelos de ouro...
O boneco de corda desceu do piano o mais depressa que pôde mas, nesse momento, a família tinha acabado de entrar. Os vários objectos voltaram rapidamente aos seus lugares, As marionetas caíram no chão. A vassoura varreu os bocados de bolachas do forno, sem se queixar e com ar fúnebre. O órgão voltou para o seu lugar no sótão soltando um grave suspiro e as cordas do piano vibraram ao de leve, gemendo...
A mulher viu a janela escancarada e o gato na sala. Com a vassoura, que já estava farta deste género de trabalhos, correu-o de casa.
Mas pobre anjo de louça! Na sua luta pela vida, havia ficado sem asas, vestes, cabelo e desfeito em cacos! E, algures atrás de um pinheiro, havia um boneco de corda que chorava baixinho... e que são as lágrimas, senão a dor da alma que transborda
A mulher saiu da sala para reaparecer, pouco depois, com um saco; com a mão, pegou nos cacos que restavam do anjo de louça e os cabelos espalhados. E varreu-o para o saco.
Num ápice de desespero, o boneco de corda saiu detrás do pinheiro, atirou o violino para o chão e, num último esforço, atirou-se para dentro do saco que a mulher levava para a rua. Lá dentro, a cabeça separada do corpo do anjo de louça, sem cabelos e rachada ao meio, voltou-se para o boneco de corda e verteu lágrimas de vidro, que o boneco lhe enxugava com as mãos.
De repente ficou tudo escuro; a mulher metera o saco no contentor. Largou-o. Ao cair, ouviram-se estalar os cacos do anjo de louça e saltar as molas do boneco de corda...
...A mãe voltou para casa, para varrer a sala que tinha ficado coberta de neve. Gira o disco de vinil, soando uma ária de Bach. O pai assobia o baixo de uma tocatta. Eno final, já sentada no sofá, a mãe reparou numa flor vermelha grande e vistosa que se encontrava no chão. Colocou-a numa jarra. Na volta, sentiu estalar algo debaixo dos seus pés; era um pequeno violino, abandonado no chão. Pegou nele e atirou-o ao fogo. À frente da lareira acesa, ficara um cabelo de ouro...